Memes são, por definição, cultura, e podem ser cultura da mais elevada. O meme do Philosoraptor, por exemplo, tropeçou em uma das questões mais profundas e revolucionárias ligando a matemática à compreensão fundamental do Universo, nossa própria mente – e, para alguns, mesmo Deus.
Pense bem na brincadeira com Pinóquio proposta pelo dinossauro meditabundo. Esta forma de gerar um paradoxo fazendo com que uma declaração faça referência a si mesma foi o truque que o matemático Kurt Gödel utilizou em 1931 para provar seus Teoremas de Incompletude, entre as mais importantes descobertas científicas e filosóficas do século passado.
Marcus Dominus cita “a explicação mais curta ao Teorema de Gödel”, de autoria de Raymond Smullyan, e como ela é realmente curta, a traduzo na íntegra. Limpe sua mente e prepare-se para alguns dos maiores mindf*cks que a ciência já pôde oferecer.
“Temos uma espécie de máquina que imprime frases em um tipo de linguagem. Em particular, algumas das frases que esta máquina pode (ou não) imprimir podem ser:
—— P*x (que significa que a máquina imprimirá x)
—— NP*x (que significa que a máquina nunca imprimirá x)
—— PR*x (que significa que a máquina imprimirá xx, o R é abreviação de repetição)
—— NPR*x (que significa assim que a máquina nunca imprimirá xx)Quando a máquina imprime NPR*FUU, isso significa que ela nunca imprimirá FUUFUU. Que é o mesmo que NP*FUUFUU. Até aqui, tudo bem.
Agora, consideremos a frase NPR*NPR*. Esta frase significa que a máquina nunca imprimirá NPR*NPR*.
Pois bem, ou a máquina imprime NPR*NPR*, ou ela nunca imprime NPR*NPR*.
Se a máquina imprimir NPR*NPR*, então está imprimindo uma frase falsa. Mas se a máquina nunca imprimir NPR*NPR*, então NPR*NPR* é uma frase verdadeira que a máquina nunca irá imprimr.
Isso significa que ou a máquina ocasionalmente imprime declarações falsas, ou há declarações verdadeiras que ela nunca imprime. Qualquer máquina que imprime apenas declarações verdadeiras deve falhar em imprimir algumas decalarações verdadeiras; ou, inversamente, qualquer máquina que imprima todas as declarações verdadeiras possíveis também deve imprimir algumas falsas”.
Talvez a explicação mais simples e intuitiva do teorema de Gödel seja em verdade o paradoxo de Pinóquio proposto pelo Philosoraptor (ou o ainda mais simples “Eu estou mentindo”). O conceito chave é a auto-referência, a forma como tanto Pinóquio ou a impressora hipotética podem produzir declarações sobre si mesmos que levam a contradições. Porém a versão de Smullyan, um pouco mais longa, torna mais fácil perceber como se relaciona com a prova matemática de Gödel: a máquina capaz de imprimir declarações, incluindo sobre si mesma, é a aritmética, grosso modo, a própria matemática.
No início do século 20, matemáticos buscavam fundamentar toda a matemática sobre uma base clara, definida, livre de contradições. A mais bela e pura das ciências. A partir desta fundação sólida, áreas mais complexas da matemática e ciência poderiam ser assentadas, de forma que ao final toda e qualquer declaração formal pudesse ser demonstrada como verdadeira ou falsa. Uma das maiores obras representando este ideal foi o Principia Mathematica de Whitehead e Russell, em que a prova de que 1+1=2 só é alcançada na página 379 do primeiro volume – e completada na página 86 do segundo (PDF).
Foi durante este ideal acadêmico com grandes programas e mentes em busca da pureza e clareza do preto no branco que Kurt Gödel tropeçou ele mesmo com a prova de que este ideal era muito claramente… impossível. Através de sacadas completamente geniais envolvendo números de Gödel e diagonalização, os paradoxos lógicos como o de Pinóquio ou do barbeiro – proposto pelo próprio Russell – foram traduzidos em aritmética e demonstrados como problemas de todos os sistemas de proposições que possam fundamentar a aritmética que conhecemos. Kurt Gödel demonstrou que estes paradoxos não são meras curiosidades ou pequenas dificuldades que poderiam ser contornadas – como acreditava Russell –, e sim ilustrações de limitações fundamentais e insolúveis. Ou o sistema de proposições é consistente e incompleto – a impressora que imprime apenas verdades, mas não todas as verdades –, ou completo e inconsistente – a impressora que imprime todas as verdades, e mentiras também.
É desta forma que há na matemática uma série de declarações que não podem ser nem provadas nem refutadas. A Incompletude. Comumente estas declarações são tomadas como verdadeiras ou falsas com base na utilidade – ou sensatez (!) – de considerá-las verdadeiras ou falsas, reconhecidamente sem uma prova formal a sustentar tal posição, que se torna um novo axioma. Na mais pura e racional das ciências, pode-se dizer que há declarações que são tomadas com base em fé.
Muitos, inclusive este autor, talvez não se sintam confortáveis com a história contada desta forma, e com estas palavras, mas este autor pensa que a questão metafísica deve ser mencionada no mínimo como curiosidade histórica. Porque o próprio Gödel considerava a questão neste contexto.
Podemos imaginar que os teoremas de Gödel demonstram como uma máquina, um computador, e ainda mais uma impressora, teriam problemas em avançar muito na matemática. Por certo computadores são bons para cálculos, mas frente a uma questão que não possa ser provada verdadeira ou falsa, um paradoxo, o computador poderia travar, e um robô poderia exclamar “it does not compute!” e seu cérebro artificial explodiria, como nas obras mais antigas de ficção científica. Gödel levava isto um tanto a sério. Para ele, que nós possamos enxergar além destes paradoxos indicava que não somos robôs, que estamos acima das máquinas. Seríamos compostos de algo mais do que a simples mecânica de 1+1=2.
Esta crença em algo mais foi uma constante na vida de Gödel. Uma de suas maiores pretensões era transformar a metafísica em uma ciência exata. Talvez não seja assim tanta surpresa que uma das provas formais em que trabalhou por décadas era nada menos que a existência de Deus.
De forma muito simplificada, em seu argumento ontológico Gödel buscou formalizar idéias anteriores – de Santo Anselmo e Leibniz – que podem ser resumidas como “Deus é perfeito, logo existe”. Pode parecer tão trivial e inócuo quanto “Eu estou mentindo”, mas se lembre do que Gödel pôde fazer a partir de paradoxos lógicos. Teria ele repetido a façanha com Deus?
Bem, nem você nem eu nos lembramos de Gödel sendo saudado por matemáticos, lógicos, filósofos ou mesmo religiosos como “Aquele que provou a existência de Deus”. A resposta é não. Seu argumento ontológico está longe de ser uma prova sólida e revolucionária como seus Teoremas de Incompletude e outras obras publicadas. O próprio Gödel reconhecia como seu argumento não era definitivo, tanto que não o publicou. Só conhecemos melhor seu desenvolvimento das idéias após sua morte, que era, com o perdão do péssimo trocadilho, um trabalho incompleto.
Mesmo a noção de Kurt Gödel de que nossa capacidade de enxergar além de paradoxos lógicos era um toque divino não é muito bem fundamentada. Que não somos limitados como computadores aritméticos é evidente, o que também deve ser evidente é que é mais comum que pensemos de forma ilógica e incoerente. Gödel via nossa capacidade de enxergar uma declaração como verdadeira ou falsa como derivada de uma lógica maior, a evidência contudo sugere que nossas certezas podem ser não raro fruto de simples arbitrariedades, desenvolvidas e racionalizadas a posteriori de forma inconsciente. Uma moeda justa lançada ao ar também pode decidir entre cara ou coroa, sem nenhum sistema axiomático ou conexão com uma entidade maior e perfeita.
Ironicamente, a própria fé metafísica de Kurt Gödel pode ser vista como uma destas arbitrariedades ultimamente incoerentes. Se ela o levou a desenvolver e provar algumas das mais revolucionárias idéias na história das idéias, no entanto, está mais do que demonstrado o valor do acaso.
(Sim, é Einstein ao lado de Gödel)
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