Há exatos 15 anos, em junho de 1997, veio ao mundo um acontecimento universal em formato de álbum (coisa mais ultrapassada, eu sei) chamado OK Computer, de uma certa banda de Oxford, Inglaterra, batizada com o homônimo de uma canção dos Talking Heads, Radiohead. Parecia só mais um disco de rock a ser incensado pelos críticos, pois feito por uma das bandas hype do momento, fervilhamento oportuno do chamado brit-pop. Parecia. Mas era muito mais.
Daqueles raríssimos insights/instantes na arte que determinam clássicos, a obra conseguiu captar e transformar em acordes, letras e melodias a essencial e quase imensurável angústia de uma geração nascida nos anos 1970, criança nos 1980 e que viu-se cheia de promessas não cumpridas nos 1990. Todo mundo iria ser rico ou famoso ou os dois.
Um tempo em que os meios de comunicação prometiam maior interação com seu público – aos menos aos mais abastados (e aqui estamos falando do Brasil) – por meio de programação e publicações segmentadas e pagas. A técnica em design gráfico e as aplicações práticas das novas tecnologias começavam a atingir aqueles 80 metros finais de escalada, próximos de onde ou as coisas dão certo ou vai tudo pras cucuias e todo mundo morre. Pra nós, nem internet havia direito ainda. No primeiro mundo também não era essa maravilha toda não, apesar de alguns anteciparem o que viria a reboque de tudo isso. É nesse interstício que vamos encontrar o homem responsável por estas linhas e as que seguem.
No mundo físico, dentro da tradicionalíssima Universidade de Oxford, entretanto, as promessas haviam sido redimensionadas e todo mundo já sabia aonde poderia ou deveria chegar. Todo mundo, exceto um tal de Thomas Yorke. Esse, outsider por excelência, havia saído há pouco de seu curso de literatura inglesa e lançado dois outros discos com sua banda, mas algo vinha mudando explicitamente dentro dele desde o segundo álbum, o também perfeito The Bends.
Na sincrocinidade junguiana – sem esquecer nunca os conceitos retirados dos estudos de seu mestre, Freud –, podemos torcer o conceito até atravessar (não sem cicatrizes, e não, não vou situar coisíssima nenhuma) o belo hegeliano, chegar às excelentes divagações literário-filosóficas de Walter Benjamin acerca da clarividência de certos artistas e irmos parar em Franz Kafka. Sim, mas não na história do inseto, mas num outro volume de textos curtos intitulado “Um Médico Rural e outros contos”. E dentro dessa salada toda, temperada ainda por Douglas Adams e Herman Hesse (citados pelo próprio Thom Yorke àqueles tempos), entender o que gerou a mescla de sonho, pesadelo, inconsciente próprio e desamparo/consciente-coletivo chamado (só a ironia salva) Ok, Computer.
Acossado pelas exigências cada vez mais prementes de uma super banda de rock, seus compromissos, turnês, fãs, dinheiro, gente opinando sobre sua vida e tentativas doentes de destroçamento de seu entendimento individual do mundo, o vocalista/guitarrista/compositor resolveu procurar conforto no terreno arenoso e ao mesmo tempo congraçador do sono e do sonho. Reconfortantes porque, se tranquilos, induzem à paz, mas lamacentos e sufocantes na mesma medida assim que somos obrigados a lidar com nossos medos, vontades e angústias, classificados todos como subconsciente e, na forma de sonhos ruins, monstros e descompasso, pesadelos. E em alguma parte do Dom Quixote, alguém fala do “enloquecimento pelo muito sonhar [ler] e pouco dormir”. Letras (e literatura) inglesas, sabe?
E tudo começa, lembremos, com Airbag. Desde a introdução, esse jogo de paz/angústia obriga todo mundo que ouve o álbum a ter de inventar um modo novo de lidar com as sensações e sentimentos induzidos pela faixa. Se a frase parece libertadora, “I’m born again”, é proferida logo depois de cantar sobre a próxima guerra mundial, “in a jackknifed juggernaut”, por meio de “In an interstellar burst” para “save the universe”. No entanto, a melodia começa com violoncelos, este instrumento universalmente associado à alegria aristocrática das horas vespertinas, burguesas, passadas em palácios, teatros e igrejas. Fim de tarde delicioso a ver o dia derreter contra um Sol que se vai em paz? Absolutamente nada a ver com o insistente barulho de sinos de pandeiro e uivo de uma das guitarras. E tudo piora, porque depois entra uma muralha de efeitos das outras guitarras, vozes, microfonia. E o violoncelo, que vai até o fim. E é só a faixa um, meu querido, minha querida. E você ainda é obrigado a reconhecer que há humor nisso tudo.
A sequência é feita de Paranoid Android. E aqui eu me abstenho de tentar classificar ou conceituar e lembro imediatamente do momento em que o Médico do conto do Kafka encontra o paciente, numa casa de um vilarejo soterrado de neve. A agonizar na cama por causa de uma ferida de pelo menos 15 centímetros, aberta e cheia de vermes: “Tenho sempre de me contentar. Vim ao mundo com uma bela ferida, foi esse todo o meu dote”. Ao que responde o médico: “Jovem amigo, o seu erro é: você não tem visão das coisas. (…) Sua ferida não é assim tão má (…) Aberta com dois golpes de machado em ângulo agudo. Muitos oferecem o flanco e quase não ouvem o machado na mata, muito menos que ele se aproxima”. Não, não vou falar do riff melancólico e ao mesmo tempo cheio de suingue, quase um convite pra dançar do próprio cavalariço do conto. Também não vou lembrar que a letra começa com o vocalista suplicando por um descanso das vozes em sua cabeça, nem da muralha de guitarras, distorção e frases desconexas logo no começo do segundo andamento da canção. Afinal, ambição nos faz parecer muito muito feios. Ouve lá, vai.
Após sobreviver às pancadas das duas músicas, a promessa de paz que não vai se cumprir mesmo, em uma quase-balada chamada Subterranean Homesick Alien. Não precisa de grandes filósofos, escritores nem do meu blablabla. A frase central da música, aquela que deveria ser o clímax da canção é: “Eu disse tudo aos meus amigos, mas eles nunca acreditam em mim, eles pensam que eu, finalmente, perdi completamente [a razão], ao invés disso, se afastam, mas eu vou estar bem, vou estar bem, tudo bem”. Precisa mesmo falar mais alguma coisa?
Enfim, acabou que o post ficou longo demais, ainda há outras nove canções no disco e vivemos num tempo que não gosta de muita conceituação nem de muitas linhas. E pra falar a verdade, ficaria melancólico além do necessário se escrevesse sobre Exit Music, Let Down, Karma Police, Fitter Happier, Electioneering, Climbing Up The Walls (Deus me livre, mesmo!), No Surprises (essa, mas nem amarrado), Lucky e The Tourist.
Também fui muito além do que devia no que tange a me preservar e continuar falando deste álbum certamente iria me enrascar. Logo, é hora de agradecer àqueles cinco ingleses por terem, um dia, resolvido montar uma banda e me ajudar a, mesmo mais cindido e angustiado que Raskolnikhov antes de matar a velha e se enrolar todo, conseguir levar a bendita da faculdade de comunicação à frente e ao fim.
Me fez bem demais naqueles fins de 1990 saber que todo o horror urbano não era só meu e se repetia ao infinito na história do mundo. Que o fracasso de todo prisioneiro do asfalto e concreto que sonha com um fim de tarde com a amada em um sítio, chácara ou acampamento, longe do barulho, do trânsito, das pequenas e grandes sacanagens da escola, da faculdade, do estágio, do trabalho (com carteira assinada ou não), das palavras tortas e mal-entendidas e das armadilhas do convívio social não é só meu, ou do médico do conto do Kafka, do personagem do Doistoievski ou de Hegel, Jung, Freud, Adams ou Hesse.
Esse tipo de descoberta libertadora é algo que eu não tenho como agradecer. Este texto foi uma tentativa torta de fazê-lo. Obrigado por Ok Computer, Thom Yorke, Jonny Greenwood, Ed O’Brien, Colin Greenwood e Phil Selway. Obrigado por eu ainda estar aqui, juventude que passou há uma década e meia.
Rodivaldo Ribeiro escreve para o Sedentário a cada duas semanas.