Quase trezentos e quarenta anos separam o nascimento de dois cavaleiros. Conhecidos por muitos nomes, um já foi chamado de figura triste; o outro, de cruzado aterrorizante. Apesar das mil e uma ilações possíveis nos intervalos que separam e unem Batman, o Cavaleiro das Trevas e O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, pretendo fugir um pouco do conceito da coluna e ser direto.
Isso, claro, apesar da minha mania de, como diria um gigante nosso, “ser mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos”, à maneira do próprio Quixote e oposto ao Batman: soturno, carrancudo, praticamente mudo.
Mas retomemos o foco: esquelético, o primeiro é fisicamente fraco, mas de uma nobreza moral inabalável, sonhador, miseravelmente solitário, obviamente louco, cheio de remendos e cicatrizes. O segundo é ultra forte mas igualmente escravo de seus devaneios, virtuoso e tão miseravelmente só, louco e cheio de cicatrizes e remendos quanto seu par. Se não for mais.
Sem nada disso em mente, entrei na última quarta-feira para assistir o fecho da trilogia cinematográfica de Christopher Nolan para o Cavaleiro das Trevas. Dos muitos aspectos que poderia ressaltar a esta altura do campeonato, a certeza de que Nolan é realmente um dos maiorais de sua geração (e só não é O maioral porque teve o azar de nascer na mesma época de uns caras chamados Paul Thomas Anderson e Darren Aronofsky, tão virtuoses na técnica de audiovisual quanto ele e cheios de ideias e criatividade nas histórias de maneira equivalente).
A se falar de cinema puro e simples, as sequências de ação são de embasbacar qualquer um, especialmente por usar de maneira comedida (e quase imperceptível) recursos de computação gráfica. Casca grossa, Nolan prefere fazer tudo na mão e na unha mesmo, gênio de engenharia de produção que é.
Como se não bastasse tudo isso, o cara ainda é roteirista de mão cheia. Elegante, conciso (seja nos outros filmes ou neste Cavaleiro das Trevas Ressurge). Não compromete nem mesmo quando derrapa na história do personagem (ou subverte por vontade própria mesmo, pra desafiar o cânone nerd, vai saber). Enfim, não estou muito a fim de falar de minúcias geeks.
Acachapado como fiquei, fui obrigado por este inglês de 42 anos a enxergar o que talvez sempre tenha me ligado muito mais ao Batman do que ao Superman, que só fui entender em sua totalidade (infelizmente pra mim e pra qualquer outro que ainda não tenha aprendido a suplantar a mera – e burra e rasa – crítica ao fato do Super ser “os Estados Unidos encarnado”) na vida adulta.
Não, o homem-morcego viciou-me em sua irremediável tragédia ainda por volta dos sete anos, quando parecia muitíssimo razoável que alguém se tornasse grande, forte e insano o suficiente para levar justiça a toda gente e, claro, vingar a morte de qualquer mãe ou pai, especialmente se fossem os meus pai e mãe.
O problema é que querer habitar o mesmo espaço que talentos do calibre de Nolan nos obriga a alcançar altitudes onde o ar só faz ficar cada vez mais escasso. No filme, é nessa sensação de segurança e oxigênio rarefeitos que acabamos por encontrar personagens como o pobre James “Jim” Gordon. Pálida cópia de si mesmo, ele é obrigado a suportar uma vida de mentira para manter viável o modo de vida de sua comunidade. Nos dias que correm, de egoísmo sem lastro, não conheço exemplo mais improvável de desprendimento.
Não até chegar ao Sancho Pança do Batman, o mordomo Alfred Pennyworth. Este, com uma vida sacrificada ao favor de um filho com quem não divide carne, sangue ou qualquer outro laço que não o amor desinteressado, obriga todos a verem-se, na alma, em um espelho distorcido de parque de diversões. Lá, parecemos pequenos demais pra ser verdade e rapidamente preferimos virar o rosto e fingir que sabíamos o que estávamos a encarar.
E esses são só os coadjuvantes da história, a esbanjar heroísmo suficiente pra superar pelo menos 70% de todo contingente humano atual (e olhe que estou sendo otimista com esse número). Entrementes, é hora de falar daquele cuja fímbria moral só encontra equivalente no nosso citado cavaleiro da triste figura. Cavaleiro também, mas é o outro, o das trevas.
Do ponto de vista da construção de personagem, um traço do Homem-Morcego sempre negligenciado em outras adaptações foi ensaiado por Christopher Nolan em Batman Begins, consolidado no Cavaleiro das Trevas e extrapolado ao absurdo neste Cavaleiro das Trevas Ressurge – a abnegação. E com essa palavra/conceito é possível definir o que torna este último capítulo algo especial e o conjunto da trilogia capaz de coexistir, na minha estante pelo menos, num lugar ao lado do clássico espanhol.
Se em 1605 era razoável a uma história mostrar um homem (Dom Quixote) que se entrega a toda sorte de violência – física, social, intelectual – para provar ao mundo que seu amor era verdadeiro e seus ideais inabaláveis, em 2012 isso é no mínimo coisa de fracassado. É com essa marca de derrota a pesar sempre sobre suas costas, olhos e alma – e ainda mancando qual Jacó após desafiar o anjo – que aparece em cena, pela primeira vez, Bruce Wayne.
Daí em diante, é um festival de pancadaria: sobre si mesmo, sobre sua relação com seu pai adotivo (Alfred) e seu irmão mais velho (James Gordon), sobre o que tinha sobrado de lembrança de seus pais (o espólio da família Wayne), enfim, sobre cada aspecto, por menor que fosse, de sua existência. E o infeliz do Batman (cada vez mais igual ao Quixote conforme a trama avança) apanha tanto que chega a dar dó. Por várias vezes, quase é possível acreditar que o desfecho também será semelhante ao do engenhoso fidalgo, indo da certeza inabalável de sua missão ao aceitamento (ainda que disfarçado) da própria sandice.
Em resumo, o filme é ótimo. E eu nem falei do questionamento social daquele ensaio de ver aplicado o ódio (inconsciente) disfarçado de todos os dias dos pobres contra os ricos (esses, plenamente conscientes do que fazem com os primeiros), da oposição do caos dos instintos que nos conferem humanidade as forças da ordem, da atuação impecável de Michael Caine, Gary Oldman e, especialmente, Christian Bale, determinado ao ponto de irritar, exatamente como o Batman original dos gibis é etc etc.
Enfim, todo verdadeiro leitor e conhecedor de histórias em quadrinhos sabe que, apesar de não haver um Coringa, este fim de trilogia foi tão intenso quanto seus dois predecessores, Batman Begins e Batman, o Cavaleiro das Trevas.
Um pouco melhor que o primeiro, tão bom quanto o segundo. Ou você é do tipo que acha que o Palhaço do Heath Ledger é insuperável, maravilhoso e melhor atuação que você viu na vida? Acha? Bem, só me resta mandar-lhe comprar pelo menos uns 25 anos de histórias em quadrinhos do Morcegão. Ledger não foi 10% do que o Coringa é de cretino, cruel e amoral no original. Portanto, pare de bancar o espertinho e admita: não havia como fazer o fim desta trilogia melhor. Com Bane, Tália al Guhl e tudo.