PÃO PRETO E VINHO TINTO
Diretor Helvécio Ratton
Quando li “Batismo de Sangue”, percebi logo que aquela era uma história para ser contada no cinema. Com cenas de ação e suspense alternadas com momentos de grande delicadeza e espiritualidade. Uma história de cinema, mas baseada em fatos reais.
A militância de religiosos, frades católicos, ao lado de guerrilheiros marxistas nos chamados “anos de chumbo” brasileiros, proporciona um olhar diferente sobre aquele momento histórico. O cinema brasileiro tem lançado sua luz sobre este período sombrio, permitindo que as novas gerações descubram e se emocionem com acontecimentos passados alguns anos atrás no Brasil. Para compreenderem melhor nosso presente.
A ação política dos dominicanos, sua prisão e tortura, e a paixão e morte de um deles, Frei Tito, revelam aspectos transcendentes. Medo, compaixão, coragem, crueldade, são os ingredientes atemporais desse filme. BATISMO DE SANGUE conta uma história vivida nos anos 60 e 70, mas é um filme do século XXI.
A distância que estamos agora destes acontecimentos permite ver melhor seus personagens. Hoje, podemos perceber toda a ingenuidade do discurso revolucionário, onde as boas intenções pareciam suficientes para mudar o mundo. Também sabemos que os torturadores eram instrumentos de um sistema que absolvia e legitimava suas ações. Por mais que nos horrorizemos, em ambos os lados do combate estavam seres humanos, com suas virtudes e fraquezas.
Decidi filmar BATISMO DE SANGUE com alto grau de realismo, para mostrar toda a intensidade dramática e física daqueles acontecimentos. De forma diferente de outros filmes sobre o período, as cenas de tortura não são apenas ilustrativas. A tortura é parte da estrutura dramática, mostrada do ponto de vista do torturado, usada para arrancar informações que mudaram o curso da história e aqui fazem avançar o filme.
Embora trate de acontecimentos políticos, BATISMO DE SANGUE não é um filme ideológico, nem foi concebido para dar lições de moral ou defender certa visão do mundo. O que nos interessa é extrair da história vivida por determinados homens um conhecimento mais profundo da vida e da condição humana.
BATISMO DE SANGUE fala do confronto entre o sonho e a realidade. É pão preto e vinho tinto, sem marshmallow-drama.
Caio Blat (Frei Tito)
Trabalhos anteriores: Lavoura Arcaica (Luis Fernando Carvalho, 2001); Carandiru (Hector Babenco, 2003); Quanto Vale ou é Por Quilo? (Sergio Bianchi, 2005); O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburger, 2006); Proibido Proibir (Jorge Durán, 2007).
Depoimento: “Recebi o roteiro de Batismo de Sangue sem imaginar o que me esperava. O período sombrio da ditadura me fora apresentado de forma episódica no colégio, numa seqüência de datas e atos institucionais e muitas generalizações didáticas constrangidas. Devo ao cinema e ao teatro toda informação subjetiva posterior que recebi sobre o regime militar, e que me possibilitou começar a visualizar um quadro político e social inimaginável para um menino dos anos 80. Ainda assim, nada conhecia sobre a atuação dos dominicanos, sobre a ordem e seu envolvimento social e político. Somente a figura de Frei Betto me era conhecida, através de seus artigos de jornal, e de sua atuação política recente, sua influência sobre nosso presidente e, evidentemente, suas críticas e sua integridade. Li o roteiro de uma vez e foi como se um episódio épico se revelasse. Ali se fundiam as lutas religiosas e sociais, uma mistura de fé – no resgate de um sentimento evangélico primordial, de compromisso com o sofrimento popular – e de injustiça, impotência, desespero. Corri atrás do livro do Frei Betto. O relato em primeira pessoa, documental, me provocou ainda mais indignação e envolvimento. O roteiro da Dani, por sua vez, transpunha o depoimento para a narrativa brilhantemente, e me transportava para dentro da clandestinidade e dos porões.
Minha busca por me aproximar do Tito incluiu, alem dos ensaios, aulas de sotaque cearense, dieta para engordar, preparação física com os dubles, sessões de até sete horas de testes de maquiagem, aulas de violão (como Gilberto Gil consegue encaixar tantos acordes em cada frase musical!?) e muita leitura. Meu quarto de hotel começou a virar um laboratório, com fotos, artigos, objetos e roupas de época. Foi onde algumas vezes chorei de angústia com a carga emocional ao fim do dia. Mas dois momentos foram especialmente reveladores: o primeiro foi a nossa primeira ida ao convento dos dominicanos quando fomos “ordenados” pelos freis. Fiquei contagiado com o sentimento de fraternidade. Fomos apresentados aos preceitos da vida conventual, vestimos o hábito pela primeira vez, ouvimos a história de São Domingos, passamos a noite nas celas. O o principal: tivemos acesso ao arquivo da ordem, e pude ler as cartas de Tito, seus poemas originais, sua letra miúda e sua datilografia vacilante em folhas amareladas. Senti um contato pessoal com ele.
O segundo momento fundamental e imprescindível foi minha curta viagem para Fortaleza, para conhecer a família do Tito. Assim como no convento, sua família sanguínea também me adotou completamente. Todos se reuniram para me receber, e me inundaram de lembranças afetivas sobre a infância e adolescência do Tito, que me deram a verdadeira dimensão da sua sensibilidade, da sua fervorosidade espiritual e de suas raízes culturais: Tito era muito ligado ao seu Ceará, e sofreu demais a saudade no exílio posterior na França, com o frio da Europa e dos europeus. Nildes, a irmã que cuidou de Tito como se fosse seu filhinho, cuidou também de mim nesta noite, preparou-me a cama e, de manhã, o café, quando me presenteou com uma relíquia: os livrinhos de catequese do Tito.
Foi assim que começamos a filmar. Uma jornada longa, dura, de máximo grau de exigência, que começava muitas vezes antes do sol nascer, e que muitas vezes doía. Durante as filmagens das sessões de tortura, misteriosamente, a câmera parou de funcionar. Eu tive dores de cabeça insuportáveis, e recebi um diagnóstico que era inédito para mim: sinusite. Lembro agora que filmamos algumas das cenas mais bárbaras de tortura no dia do meu aniversario, e que eu não achei a menor graça quando, na hora do almoço, coberto de sangue, queimaduras e cicatrizes (do brilhante trabalho do Vava Torres), todos cantaram “Parabéns a você”.
Mais um ano passado, e estávamos todos em Brasília para a estréia do filme no festival. Não me lembro de ter vivido antes uma expectativa tão grande, de tanto medo. Acho que a experiência mais traumática para um ator é assistir pela primeira vez ao filme que fez, e ainda na presença do público e dos jurados. Mas foi, ao mesmo tempo, arrebatador. Passado o susto inicial, assistimos a um filme completo, forte e piedoso, esperançoso e desesperado. Uma condução maestral do Helvécio. A parte final, um réquiem nos tons sublimes do Marco Antonio e do Lauro.
Me sinto muito honrado em, como artista, revelar o que as instituições e os governantes, ainda teimam em esconder. Como disse-me Frei Betto por ocasião do festival, se os políticos não abrem os arquivos da ditadura, o cinema está abrindo. Esse filme precisa urgentemente chegar ao público. Para gritar sua denúncia. Para apaziguar com a verdade – se é que isso seja possível – a alma da Ordem dos Pregadores, e da família de Alencar Lima. E, em algum lugar, a alma de Tito.”
Daniel de Oliveira (Frei Betto)
Trabalhos anteriores: O Circo das Qualidades Humanas (Milton Alencar/Paulo Augusto Gomes/Jorge Moreno/GeraldoVeloso/, 2000); Cazuza – O Tempo Não Pára (Sandra Werneck/Walter Carvalho, 2004); A Dona da História (Daniel Filho, 2004); Zuzu Angel (Sérgio Rezende, 2006).
Depoimento: “Estava trabalhando com Patrícia Pillar quando ela me falou a respeito de Batismo de Sangue. Na mesma hora, liguei para o Helvécio e entramos em comunhão. Com um dos melhores preparadores de elenco ao nosso lado, profissional e íntimo ao mesmo tempo, Sérgio Penna (ou Pena Kid, para mim) promoveu um grau de cumplicidade incrível; nos comunicávamos com os olhos. Além disso, realizar o processo de preparação em Belo Horizonte, minha terra natal, foi maravilhoso.
Para conhecer melhor Frei Betto, que iria viver no filme, li alguns de seus livros e também busquei escrever com freqüência, pois queria desenvolver a visão de jornalista típica do personagem. Além disso, em certos ensaios tomávamos as ruas de BH para vivenciarmos as situações do roteiro, como a entrega do dinheiro a Carlos Marighella, e sentíamos o clima de suspense e medo que pairava no ar na época da ditadura. E, mesmo com este tom pesado, foi uma preparação linda e cheia de descobertas ricas para o resto da vida. Helvécio foi um diretor de ouro: firme e delicado ao mesmo tempo, nos deixava livres para criar e nos direcionava nos momentos necessários.
É obrigação de um país conhecer sua História. Aprendendo com os erros, a nação se fortalece. Batismo de Sangue mexe num baú cheio de mofos, acorda fantasmas adormecidos. Muitos dos personagens desta época ainda circulam pelas mesmas ruas, torturadores e torturados em um país conhecido por não ter memória. É pelo resgate desta memória que digo: que venha o Batismo de Sangue!”