Essa é uma das valiosas vezes em que os fãs conseguem exatamente o que querem. Aquele breve momento onde absolutamente tudo para, menos o som fanático daqueles que sabem muito bem o que estão dizendo. Por diversas ocasiões, os estúdios procuram direcionar a opinião do público, erroneamente pecando justamente naquilo que tantas vezes foram previamente alertados pela opinião popular. São boas ideias com péssimas concepções finais. Produções horríveis, que tinham tudo para dar certo se ao menos tivessem percorrido pelos locais onde sua audiência de fato está: na Internet. E graças a ela e todos aqueles que se manifestam nela, 2016 começou com aquele que, não surpreendentemente, já se tornou uma das melhores adaptações de quadrinhos para o cinema. Com vocês, o vulgar, pretencioso e debochado Deadpool.
Humor ácido, tão azedo a ponto de se tornar doce em nossos lábios, o filme de Deadpool é uma extensão saborosa de todos os teasers, trailers do trailer e aparições divertidíssimas que contemplamos ao longo do ano de 2015 na Internet. Fruto dela e de seus fãs, a nova produção da Fox (detentora dos direitos do personagem), feita em parceria com a Marvel Studios, acerta naquilo que muitos chamariam de erros. Politicamente incorreto, arrogante, ofensivo e nada, nem um pouco, amistoso, Ryan Reynolds traz seu humor sarcástico e irônico – típico das entrevistas que sempre deu – para as telas, dando vida a um novo tipo de herói que reúne o que há de mais sujo em um personagem, tornando o anti em uma espécie de super. Seja lá qual for o tipo de ‘super’.
Um filme que só viu a luz do projetor graças ao apelo popular, Deadpool estava engavetado há 11 anos. Um projeto ousado, com concepção satírica do começo ao fim, a Fox só apertou o botão de “start” devido ao sucesso das filmagens testes feitas com Ryan Reynolds, que vazaram na internet há dois anos. Com o clamor dos fãs de quadrinhos, que viram ali a oportunidade do herói mais irreverente vir à tona do jeito certo (perdoe-nos “X-Men Origens: Wolverine”), o estúdio foi obrigado a abrir mão de suas ressalvas e chamar dois dos roteiristas mais divertidos para por o plano em execução. Rhett Reese e Paul Wernick assinam a história, trazendo os aspectos que mais gostamos daquele que futuramente se tornará um novo clássico – Zumbilândia (2009) – para o universo das adaptações de Hq. Mais do que vemos em “Guardiões da Galáxia” (2014) e “Homem-Formiga” (2015), “Deadpool” é a culminação de um conceito de adaptações que deveria ter virado tendência desde a clássica série dos anos 60 de Batman.
Além de ser uma adaptação que utiliza o humor como o tom que dita o ritmo de toda a produção, mantendo seu nível elevado até o fim, o filme é completamente metalinguístico. O personagem não está aquém do universo em que se encontra. À medida que sabe que se trata de um personagem de quadrinhos, ele admite essa realidade “paralela” como sendo sua verdadeira personalidade, a ponto de caçoar abruptamente de si mesmo em cena. Ou melhor dizendo, de Ryan Reynolds. Adotando o delicioso artifício da quebra da quarta parede, “Deadpool” possui uma narrativa não linear durante toda a primeira metade do filme. A trama possui suas idas e vindas ao tratar dos fatos cronológicos que transformaram Wade Wilson em Deadpool. Ao mesmo tempo em que o enredo nos garante a ideia de que o protagonista está nos relatando seus principais momentos, a trama se desenvolve como uma espécie de reflexão pessoal dele. Um roteiro excepcional, que ao invés de adotar uma única narrativa, se apropria de várias simultaneamente e com muita naturalidade.
Natural também são as piadas que – tecnicamente – poderiam ser tidas como montadas. É claro que cada momento cômico do filme foi estrategicamente planejado. Mas tomando para si personagens, figuras públicas e produções populares para dosar o humor negro do começo ao fim, tudo acontece de forma leve e despretensiosa. Somos sugados para esse ambiente onde fazemos uma nostálgica viagem pelas referências mais icônicas da cultura Pop, principalmente trazidas dos anos 90. Os apaixonados inveterados por esse universo se sentem em casa, conforme degustam cada momento ao som de suas gargalhadas inescrupulosas. E para aqueles que pouco conhecem a origem das piadas, perde-se um pouco, mas não o suficiente para tirar o brilho da adaptação. Vemos aqui também um uso diferente do clássico gênero pastelão. Abrindo mão das tropelias e quedas que forçam o riso, “Deadpool” faz o mesmo por meio dos diálogos e monólogos. Argumentos cômicos simples destrinchados pela postura, atitude e pela língua solta do personagem.
O entrosamento do elenco é a cereja do bolo. Ryan Reynolds está ridiculamente à vontade o tempo todo, nos questionando onde ele esteve boa parte de sua trajetória como ator. Com raciocínio rápido e muito improviso, ele e T.J Miller (Weasel) interagem como se fossem amigos de longa data. A brasileira Morena Baccarin (Vanessa) rouba a cena com sua beleza e boa atuação, fugindo dos moldes aos quais nos acostumamos em Homeland, entregando uma personagem também politicamente incorreta, que casa perfeitamente com o nosso (anti) herói.
Com palavrões que explodem diante da tela a todo o momento, “Deadpool” ainda consegue compreender a linha tênue entre humor contínuo e o exagero. Sabendo exatamente onde encaixar as piadas na trama, a adaptação possui o equilíbrio exato dentro do gênero que bravamente estreia, valorizando os momentos sérios da trama sem transformar tudo em deboche escrachado exaustivo. Com uma trilha sonora valiosa, que contrapõe o caráter do personagem em relação ao seu gosto musical (o personagem é fã de Wham!), o filme se encerra nos fazendo esperar pela famosa cena extra, que insistentemente quer nos fazer ir embora. Descontentes, vamos. Mas definitivamente continuaremos voltando às salas onde o personagem estiver.