Essa cena já se repetiu consecutivamente na mente de muitos, assim como na minha. Você a vê, revê, analisa outra vez e se permite ser levado pelo único fragmento contínuo que garante fundamento para visualizar esse momento na cabeça: as páginas da clássica graphic novel “O Cavaleiro das Trevas”. O entrave emblemático entre Batman e Superman foi, primeiramente, desenhado ali, pelas mãos de Frank Miller. E uma vez nas mãos do leitor, ele ganhou vida para além das páginas, se delineando dentro do imaginário de qualquer apaixonado por histórias em quadrinhos. Mas ganhar vida nas telas foi muito mais complexo. Mesmo com as versões animadas que acalentam o coração de quem sempre pincelou essa luta mentalmente, apenas um embate de carne e osso supriria as necessidades das crianças e adolescentes das décadas anteriores. Hoje, testemunhas da passagem do seu próprio tempo, elas contemplam o desenrolar de uma história que, ainda que acompanhe a “velhice” de seus leitores, nunca foi tão jovem e atual, na adaptação intitulada “Batman vs Superman: A Origem da Justiça”.
As sombras, os contrastes e a paleta de cores que mescla tons terrosos com tons frios, oriundos do seu material original, nunca foram tão presentes como no primeiro longa metragem live action, que coloca ambos os personagens frente a frente. Com uma edição primorosa e intimista, que usa o brilho da luz sempre como um contraponto das sombras, “Batman vs Superman” traz em si um hibridismo excepcional, pouco ou quase nunca visto em adaptações anteriores do gênero. Ao invés de se firmar como uma simples produção que visa cumprir os sonhos do imaginário infantil, como dito logo no início, Zack Snyder opta por adotar os aspectos mais fascinantes do cinema arte, aliando-os ao gênero blockbuster, que possui suas sacadas rápidas de humor e breves quebra do ritmo, para nos lembrar que estamos diante de uma ficção.
Esse olhar clínico para às páginas de “O Cavaleiro das Trevas” coloca em cena os atributos mais sombrios da trama original, replicando alguns quadros específicos, como a perspectiva de cima de Superman diante de Batman, mostrando nitidamente – em um silêncio absorto pela trilha sonora espetacular de Hans Zimmer – as discrepâncias entre os heróis. A estética e fotografia bem pensadas incorporam as sombras a cada personagem, moldando perfis expressos em rostos que demonstram cansaço e certa fragilidade, escondida em semblantes pesados e calejados pelas experiências pessoais de cada um.
O cuidado do cineasta em nos levar por diversas vezes ao universo que nos trouxe aos cinemas é louvável. Como alguém que sabia o tamanho da sua responsabilidade, ele coloca diante dos nossos olhos momentos incríveis de Batman, como aquele em que sua própria capa molda as asas de um morcego e outro, que faz a reconstrução fiel da icônica capa dos quadrinhos. Os movimentos sorrateiros do justiceiro, que se rasteja ferozmente pelo teto, moldam os aspectos do próprio animal que ele representa.
Como um filme que vai além do seu gênero, o realismo de “Batman vs Superman” nos questiona o tempo todo, nos tirando da acalentadora zona de conforto que a maioria das adaptações de histórias em quadrinhos nos permite ficar. Levantando questões sobre retidão e o interminável debate sobre poder e o homem, percebemos o toque do produtor executivo Christopher Nolan, que adotou tantos posicionamentos existenciais em sua amada trilogia. Os diálogos extremamente densos e rápidos nos encorajam a olhar para o nosso próprio contexto, nos questionando sobre nossa conduta. Ao vermos um semideus e um homem frente a frente, em uma luta manipulada e guiada pelos impulsos humanos que todos – bem ou mal – temos, a produção nos recorda porque Batman é um dos heróis mais admirados ao longo dos seus mais de 75 anos presentes na cultura popular. Em falas pontuais e diretas, ele admite que valentia seja de fato um atributo humano, graças às circunstâncias a qual essa raça foi submetida. Discussões sobre justo e injusto, correto ou incorreto permeiam todos os diálogos, tornando a adaptação palpável, aplicável e atual, independente de seus atributos fantásticos e do seu período de lançamento. Vemos a bravura humana diante da suposta supremacia mitológica e sabemos muito bem quem ganha esse entrave.
Em se tratando de luta, novamente os quadrinhos ganham vida no cinema. O momento crucial entre os heróis é repleto de golpes de alto impacto e sim, o Homem Morcego faz do Homem de Aço uma folha de papel, sem misericórdia, no estilo Karate Kid. A dureza e ira exposta em seus olhos transbordam, nos causando até um sabor amargo, considerando que nossa admiração também se estende ao garoto de Krypton. A câmera se movimenta rapidamente nas cenas de luta e muitos dos “espasmos” de Bruce Wayne são regados por cortes rápidos, especialmente em um, onde ele está sozinho entre helicópteros e soldados fardados. O diretor transforma esse rápido take em uma linda tomada de videogame, onde o milionário é cercado por simultâneos acontecimentos, que alucinam nossos olhos com uma mixagem de som saborosa aos ouvidos.
As atuações são ótimas e Ben Affleck se esforçou fisicamente para parecer tão preocupado quanto o próprio herói que interpreta. Com uma atuação mais madura, ele conseguiu honrar o personagem mais popular dos quadrinhos, entrando para o hall daqueles poucos que o fizeram bem. Henry Cavill estende seu bom trabalho apresentado previamente em “Homem de Aço” (2013), contracenando com seu elenco com tranquilidade, tal como o faz com Amy Adams, nossa Lois Lane.
Mas, honestamente, os destaques ficam com os novatos na trama. Gal Gadot incorpora a adorada Mulher Maravilha, a quem tanto esperamos até finalmente sermos capazes de contemplar no cinema. Linda e carismática, a atriz (ainda que não tenha as pernas mais torneadas como muitos esperavam) atua lindamente como Diana Prince, com um figurino todo pensado a fim de causar uma rápida associação à heroína, mantendo a elegância e o bom gosto. Tal como nos quadrinhos, a personagem é o ponto de equilíbrio entre Batman e Superman e as melhores cenas com o Apocalipse se concentram nela.
O brilhantismo da noite ficou com Jesse Eisenberg no papel de Lex Luthor. Assumindo o protagonismo vilanesco, esquecido pelos intérpretes anteriores, ele rouba a cena toda vez que aparece. Sua excentricidade, toque esquizofrênico e fala mais rápida que seu raciocínio o tornam uma figura que se destaca entre todos. Talvez o personagem mais caricato do filme, ele nos fascina com sua linguagem corporal exagerada. Aquele que parecia tão incerto foi de fato a cartada de ouro da DC e da Warner, que finalmente trazem para a linha de frente aquele vilão que amamos odiar nos quadrinhos do Superman.
Com uma apresentação cuidadosamente pensada nos novos personagens que englobam o Universo DC (Aquaman, Cyborg e Flash), Zack Snyder não dá ponto sem nó em sua nova adaptação. Ele alinha todas as esferas que tornam a DC Comics rica, em um filme que nos introduz à Liga da Justiça, à medida que garante o destaque necessário para cada figura que futuramente terá seu momento de glória diante do público. Sua fraqueza foi estender demais a primeira metade do filme, tornando-o cansativo. Sua kriptonita foi se render à ansiedade dos fãs de revelar demais em seus trailers, como fez com a primeira aparição da Mulher Maravilha (momento lindo que seria ainda maior se a surpresa tivesse sido mantida). Independente disso, “Batman vs Superman: A Origem da Justiça” ainda é uma das adaptações de quadrinhos mais completas. Mescla o cinema arte com o blockbuster com maestria, nos levando por uma viagem alucinante às inúmeras surpresas que a DC e a Warner nos guardam.