À primeira vista, sua escolha parecia de caráter duvidoso. Inicialmente rejeitado por sei o primeiro intérprete loiro e não ter os traços típicos dos galãs anteriores, Daniel Craig não foi recebido com muitos sorrisos pelo público geral. Mas bastou “Cassino Royale” chegar às telas de todo mundo em 2006 que o fascínio foi instantâneo. As feições mais rígidas de Craig se mesclaram com a elegância dos ternos feitos sob medida e seu vigor nas cenas de ação e transformaram o que era rejeição e um sex symbol, no auge dos seus 38 anos. Nove anos depois, o britânico encerra sua jornada no papel do espião mais cobiçado e amado em uma produção que se despede a todo momento do público, finalizando honrosamente uma das melhores trajetórias de James Bond.
“007 Contra Spectre” vai à raiz de James Bond, mas não nos mesmos parâmetros que o brilhante “Skyfall” fez. O capítulo final de Daniel Craig, lindamente trajado nos ternos desenhados pelo estilista Tom Ford, é marcado por uma viagem aos anos primorosos do espião, trazendo a organização Spectre para o centro da produção após 32 anos desde sua aparição (que data 1983, em “007 Nunca Diga Nunca”). Presente em oito filmes da saga de James Bond, a instituição volta a ser o centro dos conflitos e nos reapresenta a Blofeld, desta vez vivido por Christoph Waltz. Trazendo vestígios de Skyfall para o núcleo da trama, “Spectre” reacende nossa memória com os aspectos que mais nos cativaram no penúltimo filme, abordando a espionagem por um viés mais intimista e emocional, voltando também às memórias de Bond.
Nesse sentido, o roteiro caminha lindamente. Por se tratar do filme de despedida de uma das melhores fases de James Bond desde Sean Connery, Sam Mendes e seu quarteto de roteiristas alimentam em nós o sentimento saudosista, nos levando a uma epifania onde percorremos rapidamente por todos os quatros filmes da era Craig. Ampliando ainda mais o alcance e abrangência da organização Spectre, o filme nos apresenta à instituição como algo novo para alinhar os novos fãs a uma saga que percorre décadas e gerações, à medida que remete ao passado glorioso em detalhes como o icônico carro de Bond, o Aston Martin de 1964, e aos vilões que contribuíram para a consagração da era 2006-2015.
O sentimento de despedida ao longo das mais de duas horas de filme surge também no roteiro em si. A fusão da MI6 com outra organização coloca todo o sistema de espionagem da instituição em um eminente colapso, a ponto de sucumbi-la em níveis tão profundos que o seu próprio corpo de espiões deixaria de existir da forma como o conhecemos. O fim que parece nos alcançar após incansáveis nove anos ao lado de Daniel Craig percorre também os átrios da MI6 e o adeus parece estar cada vez mais próximo, em todos os âmbitos. O sentimento de perda se estende ao filme, o que torna as despedidas ainda mais duras de serem ditas.
Em se tratando de direção, Sam Mendes se mostra a vontade com o elenco, trazendo seu estilo pessoal para um filme de espionagem, dado corpo (mais uma vez) a uma produção que não se trata apenas de tiros e pancadaria. Explorando sua ótica já vista em seus filmes “Beleza Americana” (2000) e “Foi Apenas Um Sonho” (2008), ele une o simbolismo da profundidade do olhar e das reações do elenco em cena, enquanto também se mostra versátil em momentos mais rápidos, como em uma brilhante sequência nos primeiros 10 minutos de filme, de um duelo emblemático entre Bond e Marco Sciarra (Alessandro Cremona), a bordo de um helicóptero em uma quase espiral alucinante. Para deixar sua marca na direção, o cineasta logo começa com um simples plano-sequência, que pode passar despercebido para os mais distraídos, mas já nos imprime sua assinatura logo de cara. Quanto à abertura, sempre um espetáculo a parte, a canção “The Writing Is On The Wall” soa mais cativante agora que está contextualizada, isso para aqueles que se mostraram avessos a musica, em primeira instância (o que não foi o meu caso).
A única fraqueza de “007 Contra Spectre” está em nos permitir ficar à deriva em relação à personificação de Blofeld de Christoph Waltz. O ator sempre nos surpreende por sua versatilidade e irreverência e vê-lo como o grande vilão da produção gerou todo tipo de expectativa, que saberíamos que seria muito bem superada. No entanto, a fraca caracterização do personagem por parte dos roteiristas e sua real aparição tardia nos deixam no vácuo, a espera de algo que nos é prometido no trailer, mas não foi entregue. A falha não está em Waltz, que faz das tripas o coração, replicando a clássica cicatriz de Blofeld, que corta parte do rosto, com um pavor ideal. A falha está na composição do personagem, que não faz jus ao ator e o reduz a um vilão esquecível, diferente daquele vivido por Javier Bardem. A comparação entre ambos é extremamente pertinente, pois mostra o que uma boa caracterização é capaz de fazer em cena.
Quando caminhamos em direção ao final de “Spectre”, novamente somos tomados por aquela sensação inevitável do fim de um ciclo. E todo esse simbolismo do adeus é algo que vemos clinicamente pontual apenas nessa fase de James Bond. É estranho pensarmos que aquele que era rejeitado agora não que ser liberado e as despedidas frequentes em “Spectre” e direção de Sam nos salientam o desejo de fazer isso de forma memorável. Afinal de contas, talvez esse seja o personagem mais difícil de desprender depois da soberba performance de Daniel Craig, que precedeu o fraquíssimo desempenho de Pierce Brosnan. E a música tema de Sam Smith extrai justamente isso. O escrito na parede é o nome de James Bond, dentre tantos outros que “serviram bravamente”, e agora ele pendura seu blazer em um adeus sublime. Mas ainda que o fim seja um fim, nós sabemos que para cada encerramento, há sempre um novo começo. E quem sabe ele não seja com Idris Elba, para dar sequência na quebra de protocolos.