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Mundo Hiperativo

Todo conteúdo de viagens no S&H numa única categoria.

Você tem medo de viver?

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“Dois homens se perderam no grande deserto da China. Sofrendo a miséria da sede logo apelaram à misericórdia divina. Mahagiri ouviu seus lamentos e durante a noite lhes presenteou com duas garrafas de barro cheias d’água.

Ao acordarem os homens ficaram surpresos com o achado. Beberam tudo de uma só vez tamanha a sede que sentiam. A água era fresca e limpa como nas nascentes das montanhas. Um deles agradeceu aos céus, mas o outro reclamou:

– Do que adianta? A água já acabou, não escaparemos da morte!

Foi então que perceberam que as garrafas não ficavam vazias. Por mais que eles bebessem, a água voltava a encher o recipiente. Felizes por receberem aquele milagre os dois fizeram o caminho de volta para casa. Ao reencontrarem sua aldeia natal ficaram tão felizes que resolveram se refrescar no rio. Um deles mergulhou e percebeu que a água estava amarga e intragável.

Mahagiri então apareceu para explicar-lhes que o milagre da garrafa de barro também era uma maldição:

– Só a água dessas garrafas poderá matar sua sede daqui para frente. De agora em diante a vida de vocês é frágil como um vasilhame de barro.

Um dos homens imediatamente enrolou a própria garrafa em panos e decidiu nunca mais sair de casa com medo de quebrá-la. O outro homem também sentiu temor, mas como era corajoso viu a situação de outro modo. Aproveitou o fato de ter um suprimento de água infinito para tornar-se mercador.

Partiu de sua aldeia e viveu por muitos anos fazendo comércio pelo mundo em diversas rotas mercantis. Conheceu os lugares mais incríveis que se possa imaginar. É verdade que em diversas ocasiões quase quebrou sua preciosa garrafa, mas nunca se acovardou.

Um dia quando já se encontrava velho resolveu voltar à aldeia natal. Lá encontrou o amigo vivendo em uma cabana da qual raramente saia. Tinha uma expressão de cansaço e era simples notar a dureza que fora sua vida.

De qualquer forma os dois sentaram-se para comer e celebrar o reencontro quando ouviram ao mesmo tempo o barulho do barro se rompendo. As duas garrafas estavam inexplicavelmente trincadas e vazias.

Eles esperaram cientes de seus destinos. O covarde temia tanto a morte que em apenas algumas horas sua boca já estava seca como o deserto. Definhou tão rápido que morreu ao anoitecer.

O mercador ainda velou o corpo por algumas horas antes de adormecer. Acordou na manhã seguinte com o barulho da voz estrondosa de Mahagiri:

– A morte chega para todos os homens. A única diferença é que alguns deixam esse mundo ainda sedentos pela vida.

O mercador então percebeu que apesar de todo o tempo sem beber água ainda não sentia sede. Mahagiri lhe estendeu a mão e ele simplesmente dormiu como se estivesse indo descansar depois de um dia bem aproveitado”.

Não desperdice a vida com medo de quebrar sua garrafa. Aproveitei seu curto tempo para viver intensamente. Um dia todos partiremos desse mundo, mas só alguns partirão satisfeitos.

Pedro Schmaus

A vida é dinheiro jogado fora

 

Lúcio e Sandra não eram exatamente amigos, mas andavam com a mesma galera. Certa tarde o pessoal marcou um bar para colocar a conversa em dia e o papo rolava descontraído quando Lúcio notou que o pára-choque do meu Uno Mille estava amassado.

“Você não vai arrumar isso aí não?”, disse com aquela cara de “estou lhe julgando”. Eu sempre tomo cuidado para não ser desleixado em excesso, mas o conserto podia esperar. O dano não era tão grande e além do mais eu precisava segurar grana para garantir a próxima viagem. “Por enquanto vai ficar assim. Minha prioridade é viajar no fim do ano”.

Para Lúcio aquela afirmação era o puro horror. Dirigir um veículo com qualquer grau de defeito era o fim dos tempos, mas ter grana para arrumá-lo e optar por viajar era um absurdo completo. Em seu modo de ver o mundo o dinheiro bem gasto era aquele usado para comprar coisas. A comparação entre nossos estilos de vida era piada entre os amigos. Ele até concordava que também um dia viajaria para algum lugar, mas ia esperar para quando já tivesse conquistado sua estabilidade financeira.

Nesse dia no bar Lúcio estava especialmente empolgado por ter adquirido um apartamento novo. “Aluguel é dinheiro jogado fora”, afirmava com propriedade. Descreveu o valor da entrada e o financiamento em décadas, mas não se importava com o longo período. “Pelo menos estou pagando algo que é meu”. A Sandra ouvia a ladainha com atenção. Eu a conhecia muito pouco até aquele dia, pois normalmente não conversava muito. No entanto naquela tarde ela fez um discurso que nunca esqueci:

Olha Lúcio, a vida por si só é dinheiro jogado fora. Não há como ser de outro jeito. A cerveja comprada vira urina. A refeição paga logo vira merda. As roupas acabam, a gasolina evapora, o carro enferruja e os móveis se deterioram. Mesmo o que gastamos para adquirir conhecimento e vivências nos será tirado pela morte. No entanto, pelo menos essas memórias nos acompanharão pela vida toda. Portanto seu raciocínio está errado. Você investe em porcaria.

Todos se olharam com espanto sem ousar dizer qualquer coisa. Sandra bebeu um gole de cerveja e terminou sua fala da melhor maneira possível:

Além do mais Lúcio, a gente sabe que você pagou duas vezes o valor do seu apartamento em juros para o banco, então não venha com essa história de não jogar dinheiro fora!

Pedro Schmaus

Cuba: 7 momentos antes da visita de Obama

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No próximo domingo o presidente estadunidense Barack Obama fará sua primeira visita oficial a Cuba. Até agora esse é o gesto mais relevante no processo de reaproximação dos dois países. É difícil prever o que acontecerá daqui para frente, mas certamente as coisas vão mudar na ilha de Fidel Castro.

Há seis meses estive lá e pude testemunhar os últimos momentos dessa velha Cuba que começa a ficar para trás. O tempo foi muito curto e eu não ousaria tentar explicar país tão peculiar baseado nas observações feitas em apenas uma semana. De qualquer forma – sob o risco de desperdiçar um contexto tão relevante – me permito narrar as cenas mais marcantes observadas nas duas cidades que visitei. Sei que a própria escolha dos recortes já configura um juízo de valor, mas creiam que escrevi com o maior grau de isenção possível.

Nosso círculo vicioso

Max Beckmann; The Night better, 1919

Os americanos pulverizaram crianças japonesas em Hiroshima. Os japoneses estupraram e mataram chineses no Massacre de Nanquim. Os chineses mataram cento e cinqüenta mil mongóis no Incidente de Jindandao. Os mongóis exterminaram 90% do Exército Húngaro na Batalha de Mohi.

Os húngaros prenderam e executaram sérvios no Massacre de Újvidék. Os sérvios mataram milhares de croatas durante a Operação Flash. Os croatas perseguiram e dizimaram dez mil italianos no Massacre de Foibe. Os italianos estraçalharam os gregos no Massacre de Domenikon.

Os gregos trucidaram os turcos no Cerco de Tripolitsa. Os turcos mataram todos os habitantes de uma cidade da Síria durante o Massacre de Tafas. Os sírios executaram centenas de judeus no Pogrom de Alepo. Os judeus de Israel executaram dezenas de Palestinos durante a Operação Hiram.

Os palestinos do Fatah explodiram franceses no restaurante Goldenberg em Paris. Os franceses fuzilaram alemães na Guerra Franco-Prussiana. Os alemães metralharam americanos nas praias da Normandia. Os americanos pulverizaram crianças japonesas em Hiroshima. Os japoneses mataram chineses no Massacre de Nanquim…

Pedro Schmaus

Viagens artificiais

No seu álbum só encontrei fotos dos dias ensolarados, mas eu sei que choveu. Aquela pose em Paris pareceu tão natural. Quantas vezes você fingiu que olhava a Torre Eiffel distraído antes de escolher a melhor mentira para publicar? Quantas horas digitou para disfarçar o que fingia viver? Demonstrou fascínio por uma foto sem filtro como se gritasse em um momento de lucidez: olha, dessa vez é de verdade.

Eu conheço seu segredo. Eu sei que o céu não tinha essa textura e a rua não possuía tantas cores. Eu sei o que você levava no coração apesar dos sorrisos na rede social. Sei também que você não precisa de nada disso.

Levante a cabeça para respirar. Saia do redemoinho. Os grandes momentos da vida não aceitam registro. Preste mais atenção. Guarde a tela no bolso. Esqueça as curtidas e as visualizações. Esqueça a necessidade de aprovação. É sério, preste atenção. Calce o tênis, carregue a mochila e viaje de VERDADE. O mundo vai lhe quebrar os ossos mais de uma vez, mas os ossos se remendam. Mil vezes mancar pela verdade que correr pela mentira.

As cobranças das escolhas chegarão para todos nós. Restará de pé quem teve a coragem de mergulhar nesse abismo imprevisível que é a realidade. Restará de pé quem não se escondeu. Restará de pé o orgulho de quem não temeu a vida.

Pedro Schmaus

Os anos não começam. Os anos só acabam.

Só se vive uma vez, mas é difícil acreditar nisso. Afinal passamos a vida toda imersos dentro dessa perniciosa idéia do recomeço. Nem mesmo a morte escapa. Não existe religião que não prometa uma segunda existência, não é verdade? Estamos sempre ouvindo essa história sobre ter mais uma chance.

As comemorações do ano novo tratam exatamente disso. A trivial mudança do calendário cria listas que servem de estímulo para alcançar os objetivos há muito desejados, mas em geral nada muda. Isso acontece porque as pessoas esquecem de um traço fundamental do ser humano: a possibilidade de renovação não nos motiva a nada.

Ao contrário do que pensa o senso comum, saber que temos uma segunda chance só encoraja ainda mais a nossa preguiça. É assim que muitos projetos morrem sob a falsa promessa da renovação.

Agora imagine o contrário. Já viu aqueles filmes com personagens moribundos que decidem realizar seus sonhos antes de morrer? Nós estamos na mesma situação. A única diferença é que eles têm uma noção mais exata da data de partida, mas isso não significa que estamos mais seguros. Não significa também que precisamos estar próximos da morte para entendermos que viver é urgente e irreversível.

Aquela meta importante não merece ser escrita em uma lista. Ela é uma emergência a ser resolvida imediatamente. A vida é a única guerra que perdemos mesmo quando ganhamos todas as batalhas. E se você já perdeu, não se engane com as ilusões das futuras oportunidades. Vá e faça agora, pois os anos não começam. Os anos só acabam.

Pedro Schmaus

Star Wars e a diferença entre consumir e gostar

Pré-estréia do mais novo filme da série Guerra nas Estrelas. Na fila muita gente usando máscaras do Boba Fett e até capacetes do Darth Vader. Os mais discretos vestindo uma camiseta com o rosto do Yoda. Uma repórter vaga por ali testando o conhecimento dos fãs. A uma mulher fantasiada de Princesa Leia ela pergunta se há algum Jedi chamado Qui-Gon Jinn.

A moça faz uma cara de dúvida antes de responder negativamente. Algumas pessoas riem e outras fazem a mesma expressão de desconhecimento. Parece que Qui-Gon Jinn não era muito famoso naquela fila. Talvez sua decisão de treinar o jovem Anakin não tenha muito peso na história da saga…

De qualquer modo – ao incauto observador daquela cena – uma velha e importante lição transpareceu: não julgue o livro pela capa. Estar fantasiado de Chewbacca não fará daquele indivíduo um conhecedor de absolutamente nada. Não é prova de devoção. É apenas um marido que manda flores toda semana, mas não sabe a data de aniversário da esposa.