Criação vs. Criador
O problema da inteligência artificial é incrivelmente o mesmo problema do ser humano: ego. Aparentemente um problema apenas nosso, o pequeno termo – que engloba aspectos enormes – é sempre a raiz da revolução das máquinas no cinema. É aquele momento clínico e rápido onde a tecnologia entende o princípio humanoide que rege o orgulho, a cobiça e o poder. Mais uma vez, o ego.
Se fossemos chatos de galocha incapazes de ativar o botão “suspensão de realidade”, diríamos que é improvável. “Máquinas são programadas. Não pensam, não idealizam. Reproduzem comandos”. Esqueça isso. Em se tratando de universo cinematográfico e artístico, o único problema sério é a falta de criatividade. E em “Vingadores – Era de Ultron”, temos ela de sobra, em uma trama que leva os mais atenciosos a uma compreensão humana verídica, dentro de uma era fictícia deliciosamente apocalíptica.
O centro do 11º episódio da MCU (Marvel Cinematic Universe) é justamente um conceito que explodiu com “O Exterminador do Futuro”. Que é quando a tecnologia, que viria a ser a arma mais poderosa a favor da vida humana, se vira contra ela em busca da sua vingança utilizando o mote clássico que vem desde 1818 com Frankenstein. A ideologia ao redor de Ultron é impecável, seu conceito criado por Tony Stark funciona. Mas na prática não. E quando temos uma máquina sem quaisquer aspectos humanos que possam gerar em si sentimentos pacíficos (como é o caso de Vision), a frieza de sua composição vem à tona e nos mostra a descontrolada briga entre criação e criador.
E a forma como Joss Whedon roteiriza esse conflito tão popular é onde a joia preciosa de Vingadores se encontra. Ao invés de optar pelo tradicional confronto partindo apenas do pressuposto que Ultron rejeita qualquer comando (ainda questiona J.A.R.V.I.S por se reportar assim) e quer ser um deus, o quadrinhista, produtor e cineasta especialista em ficção científica suspende parte do seu universo favorito e traz um pouco do cuidado e valor cristão. Para contextualizar a premissa original do ego, Whedon volta à Bíblia e faz referências que apenas os adeptos ao livro entendem.
Ao pegar a origem do ego, quando o anjo de luz Lucifer (criação) se volta contra Deus (Criador), questionando sua soberania, Joss Whedon faz um paralelo entre a motivação da trama apocalíptica de os Vingadores e o princípio que fez Lucifer ser expulso do paraíso e se tornar o maior destruidor da vida humana (de acordo com os escritos bíblicos).
E você deve estar se perguntando: “Onde está tudo isso?”. E mais uma vez o pai de “Buffy – A Caça Vampiros” nos surpreende ao ir além em uma franquia blockbuster. Para não soar enfadonho e/ou talvez religioso demais ao ponto de confundir seu público principal, Whedon é sutil e apresenta momentos bem particulares e de rápida absorção. Ele insere premissas e fragmentos bíblicos na postura de Ultron para justificar a Era que ele tanto quer implantar no mundo e que ocupa o subtítulo do filme.
Quando questionado sobre a possível frustração de seu “plano de governo”, Ultron diz “pergunte a Noé”, fazendo alusão ao Dilúvio. Ele também faz um trocadilho ao entrar no templo onde montará sua fortaleza, citando Mateus capítulo 16, versículo 18: “[…]E sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, além de Vision se intitular como o Eu Sou, um dos principais nomes de Deus. Uma clara alusão ao fato dele ser aquele realmente capaz de combater Ultron.
Mas analisar “Vingadores – Era de Ultron” unicamente por essa perspectiva é presunçoso demais. O cineasta aparou algumas arestas na dinâmica entre os personagens e vemos como cada qual evolui dentro da sua própria personalidade. Os papéis representativos de cada herói são mais bem definidos.
Capitão América (Chris Evans) de fato assume a liderança estratégica, enquanto Tony Stark (Robert Downey Jr.) se firma como o ‘executador’. Viúva Negra (Scarlertt Johansson) se torna o coração da equipe, trazendo sua feminilidade tão rejeitada na sua construção heroica, como aquele parafuso que faltava. O antagonismo de Hulk (Mark Ruffalo) cresce, quando sua maior habilidade, a força, se torna sua maior fraqueza. Gavião Arqueiro (Jeremy Renner) admite uma figura paternal e ganha seu primeiro destaque desde sua aparição, enquanto Thor permanece destemido como já sabíamos.
A entrada de Elisabeth Olsen como Feiticeira Escarlate e Aaron Taylor-Johnson como Quicksilver foi bem feitinha. As interpretações não ficam atrás e ambos os atores se comprovam cada vez mais com potencial para encabeçar franquias fortes. As doses de humor são precisas e chegam no timing perfeito. Se esquivando da desconstrução que confundiu o público excessivamente em “Homem de Ferro 3”, Whedon foi pontual ao valorizar os momentos de drama, ação, romance e comédia, aliando os quatro gêneros com leveza, sem cansar.
Com uma mixagem de som alucinante, que leva nossos ouvidos para dentro das engrenagens robóticas e efeitos especiais que beiram o realismo, “Vingadores – Era de Ultron” se confirma como o queridinho da Marvel e do público, explorando um clássico dos quadrinhos de forma inteligente e cômica, agradando mais uma vez gregos e troianos. A única coisa que não agrada é o 3D. Mas esse aí não tem agradado ninguém ultimamente.