Eu estava em um dos cafés que margeiam os muros do Vaticano. Faltava cerca de uma hora para a abertura dos portões e o jeito era enrolar por ali. Em uma das mesas um grupo de viajantes conversava animadamente. O tema – como não poderia deixar de ser – era religião. Uma senhora escandinava falou algo interessante:
– Apesar de ser cética, creio que pessoas inteligentes devem se interessar por religião.
Naturalmente senti um desejo de saber mais sobre essa idéia. Já na fila para entrar no Museu do Vaticano me apresentei a ela. Chamava-se Beatrijs e se disse ateia muito tempo antes da atual onda de “conversões” iniciada por Richard Dawkins. Reclamou que a juventude ateísta lhe parecia tão fanática quanto a maioria dos religiosos. Reiterei minha pergunta: mas porque pessoas inteligentes devem se interessar por religião? Ela mandou o seguinte:
O nosso mundo é como aquela fábula dos cegos e do elefante. Um cego toca a tromba e pensa que o elefante é uma cobra. Outro toca as presas e julga ser o chifre de um cervo. No final – apesar de tocarem o mesmo animal – eles crêem que apalpam coisas diferentes, porém estão errados. Com o mundo é a mesma coisa. Ele é grande como o elefante e se tocarmos somente uma parte dele não poderemos entendê-lo completamente. Depois de me debruçar sobre o assunto eu concluí que não creio em um Deus. No entanto, é inegável que qualquer um que queira entender o mundo precisa compreender também o fenômeno religioso. E não se trata de viver uma experiência transcendental. Trata-se apenas de entender um contexto histórico. Veja tudo isso aqui, observe o Vaticano. Aqui está o cerne da civilização ocidental. Como eu posso dizer que tudo isso é uma bobagem?
Beatrijs passou no detector de metais e seguiu com seu grupo. Não a vi mais. O argumento dela me fez pensar em toda a história guardada ali. Imaginei o Michelangelo pintando a Capela Sistina, o enterro de São Pedro e a Guarda Suíça salvando o Papa Clemente VII.
E lá estava eu – na Santa Sé – diante de todas essas possibilidades.
Porém – antes de ficar feliz pela chance de conhecer tanta cultura – lembre-se das filas. Poucos viajantes abrem mão de conhecer a sede da Igreja Católica Apostólica Romana, então sempre está lotado. No último domingo do mês é de graça, mas a fila é algo desse tipo aqui. Para evitar esperar demais resolvi pagar meu ingresso mesmo e usei uma tática específica. Há um site chamado Rome Museum que vende entradas para os passeios do Vaticano. Existe a opção de comprar só as entradas ou pagar um extra para visitas com guia. O bom de optar pelo guia é que há uma fila específica (menor) para grupos. Acontece que incluir o guia fica mais caro, por isso Rome Museum tem uma opção interessante.
Pagando os 15 euros do ticket para entrar no Museu do Vaticano e na Capela Sistina mais uns 10 de conveniência, você pode acessar o local usando um guia e pegar a fila de grupos. Já lá dentro, o guia se despede e o viajante fica por conta própria. Eles chamam esse serviço de Grupo Coordenado. No site tem os detalhes de como encontrar o guia nas proximidades da entrada e o pagamento pode ser feito online. Fique muito esperto em relação ao dia do seu agendamento, pois há muitos feriados católicos e o Vaticano os leva muito a sério.
Enfim – após uma rápida checagem da segurança – eu estava dentro do museu, um dos primeiros visitantes a chegar. O lugar é magnífico. São na verdade vários museus com peças arqueológicas de diversas culturas antigas do mundo, uma pequena amostra da influência da Santa Sé.
Minha primeira parada foi a Pinacoteca Vaticana com suas pinturas de grandes artistas italianos. Uma das obras mais interessantes é um Da Vinci chamado São Jerônimo no Deserto. É um quadro inacabado e por isso seu visual é estranho. Porém, serve de ótima referência para a compreensão da técnica de sfumato usada por Leonardo. O gênio italiano pintava de uma maneira bem diferente se comparada aos pintores convencionais. Ele não fazia o desenho todo de uma vez e depois retocava. Na verdade ia criando camada por camada, acrescentando detalhes mínimos, até completar a figura inteira. A técnica exata de Da Vinci é até hoje um mistério, apesar do sfumato ter sido executado por outros artistas. Na pinacoteca e em outras galerias há também trabalhos de Rafael (A Escola de Atenas) e Caravaggio, imperdíveis.
Logo entrei na Galeria dos Mapas. Na verdade, o nome correto seria corredor dos mapas, e um corredor daqueles. São cerca de 120 metros! O teto em estilo barroco é tão ornado que você quase esquece de ver os mapas em si. A coleção traz uns originais inacreditáveis, incluindo alguns com os primeiros mapeamentos do Brasil.
Existem muitas galerias com esculturas também, mas o conjunto de museus é grande demais para um dia, por isso sugiro uma pesquisa para saber o que visitar. Sem essa preparação é capaz que o viajante fique perdido no meio do acervo.
Por isso passei rapidamente pelas esculturas e segui a multidão até a entrada para a Capela Sistina, o local do conclave que em breve escolherá o novo Papa. Quando se entra lá pela primeira vez o impacto é grande. É tudo tão ornado que mais parece um muro grafitado, só que nesse caso entre os grafiteiros está o Michelangelo. É necessário algum tempo de atenção para distinguir cada um dos desenhos. A altura é grande e fica impossível não imaginar o trabalho que deu pintar aquilo tudo. Engraçado lembrar que as belezas artísticas do Vaticano foram feitas em sua maioria pelos Papas mais vis e corruptos, mas donos de grandes fortunas e gosto pela ostentação.
Na Sistina é proibido tirar fotos – mesmo com flash – o que acho uma bobagem, por isso tirei a minha escondido. Ora, com flash tudo bem que pode estragar, mas sem flash não tem problema. É claro que o guarda italiano não quis ouvir os meus apelos e mandou desligar a câmera.
Deixei a capela e encontrei então um tipo de jardim interno do museu. No centro há uma escultura do artista Arnaldo Pomodoro, uma esfera bem moderna se comparada ao restante do cenário. O destaque fica por conta da famosa Pinha do Vaticano, aquela que por sua notoriedade está descrita no livro A Divina Comédia. Dante a usa como metáfora para descrever o rosto de um dos personagens do livro: la faccia sua mi parea lunga e grossa come la pina di San Pietro a Roma.
A pinha foi na verdade feita pelos romanos e ficava num templo próximo ao Panteão, mas isso até ser movida para as cercanias da Basílica de São Pedro durante a Idade Média. Descobri depois que esse jardim no qual ficava as esculturas se chamava Cortile del Belvedere e fora projetado por Donato Bramante, o mesmo gênio criador da monumental escadaria. O mais sem noção é que conheci essa escadaria numa fonte improvável.
Na Sessão da Tarde rolava sempre um filme chamado Hudson Hawk estrelado pelo Bruce Willis. Uma das cenas é no Vaticano e isso despertou minha curiosidade sobre as escadas. Isso só mostra que não existem obras ruins, existem leitores ruins…
Saí então do museu e cheguei à praça para enfim entrar na Basílica de São Pedro. A entrada é grátis, exceto se você decidir subir na cúpula (7 euros). Depois de uma leve fila pude contemplar uma das igrejas mais sensacionais do mundo cristão. Ela foi o resultado do trabalho de diversos artistas e arquitetos, incluindo aí até o Bramante. Lá dentro as pessoas ficam pequenas devido à altura da nave. A Igreja diz que São Pedro está enterrado ali. Seria esse o motivo pelo qual aquele terreno foi um dos primeiros locais adorados pelos cristãos em Roma.
Logo próximo da entrada está a célebre escultura Pietà de Michelangelo. A mãe de Jesus o ampara nos braços depois de sua crucificação. Nunca antes a cena tinha sido retratada de modo tão realista e o jovem artista – então com 23 anos – recebeu algumas críticas, mas a perfeição da obra transpôs qualquer julgamento.
A outra obra que impressiona no interior da basílica é o refinado altar no qual o Papa realiza suas funções. Feito em bronze no século XVII, ele se projeta a 30 metros de altura dentro da Basílica. Foi construído por Bernini exatamente sobre o túmulo de São Pedro.
O passeio no Vaticano é uma aula sobre a História do Ocidente. Sendo o viajante religioso ou não, é preciso reconhecer que por séculos toda a força espiritual e material de milhões de seres humanos esteve voltada para esse local. Por isso é natural que as obras aqui sejam as mais refinadas possíveis e sejam em si o exemplo da capacidade humana. O acervo artístico do Vaticano é um primor independente das críticas voltadas à Igreja que ele representa.
Diante disso, é impossível não lembrar da fala de Beatrijs. Não podemos ser como os cegos que tentam entender o elefante tocando apenas algumas partes. O ser humano inteligente tenta compreender o todo, sabe que nada existe em um sentido isolado. Afinal, não há ignorância maior do que rejeitar uma coisa da qual não se conhece nada a respeito.
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