O lançamento da primeira aventura de Superman em Action Comics 1, de 1938, provocou um verdadeiro alvoroço entre os jovens no final dos anos 30. Os Estados Unidos passavam por uma grande depressão econômica, o que acarretou em milhares de desempregados e famintos por todo o país. Neste momento surgem os super-heróis, seres poderosos e imbatíveis, tudo o que os americanos não se sentiam naquele momento. Apesar disso, os roteiros das histórias ainda se baseavam muito na narrativa dos antigos pulps, quadrinhos basicamente detetivescos (prova disso é o próprio nome da editora DC que vem de Detective Comics), e mesmo o Superman, que possuía uma origem embasada na ficção-científica, acabava sempre desvendando crimes de gangsters, os vilões mais comuns naquela época.
Então em 1940 o roteirista Bill Parker e o desenhista Charles Clarence Beck criaram o Capitão Marvel no qual aliaram uma estética claramente inspirada no homem de aço à histórias de origem mística e fantástica. Ao proferir a palavra mágica SHAZAM, (as iniciais de Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio) o garoto Billy Batson se transforma em um ser superpoderoso que agrega os dons místicos dos antigos deuses. O grande mérito de seus criadores foi reconhecer em seu público alvo, garotos entre 8 e 16 anos, o desejo de ser como seus heróis favoritos e dessa forma criar um personagem com alto grau de identificação, o que alavancou as vendas da pequena Fawcett Comics, ultrapassando, inclusive, seu predecessor kriptoniano.
Logo a série começou a ser publicada também na Inglaterra, pela L. Miller & Son, alcançando enorme volume de vendas, porém nos Estados Unidos uma batalha judicial entre a DC Comics e a Fawcett se desenrolava, ameaçando pôr um fim nas aventuras do Capitão Marvel.
A DC, assustada com as vendas da rival, acusou a pequena editora de plágio, o que provocou a interrupção da publicação das aventuras do herói de capa branca e amarela e sua posterior venda ao catálogo da DC Comics por um preço módico. Enquanto isso, na Inglaterra, Lee Miller não queria deixar de publicar o grande sucesso de sua editora, e assim que soube do fim da produção americana tratou de chamar o artista Mick Anglo para repaginar o personagem. Assim, após a edição 24 de Capitão Marvel, apareceu nas bancas britânicas Marvelman 25 (o nome Miracleman viria a ser usado somente nos anos 80). O que Anglo fez foi nada mais que mudar uniformes e nomes dos personagens, mas mantendo uma base de coadjuvantes e vilões, bem como, a origem do herói, que agora se chama Michael Moran e ao pronunciar a palavra KIMOTA (Atomik ao contrário?!) invoca a “chave harmônica do universo” e assim assume poderes quase divinos.
Onde antes existiam Mary Marvel, irmã de Billy Batson, e Capitão Marvel Jr., agora atuam ao lado de Marvelman, Young Marvelman e Kid Marvelman. Os vilões Dr. Gargunza e Nastyman tinham os mesmos objetivos de todos os vilões caricatos dos anos 50, dominar e/ou destruir o mundo, sempre dando o máximo de chance para que os heróis consigam impedir suas façanhas malévolas. Apesar de manter as vendas altas por algum tempo, a falta de originalidade e de competência nos roteiros fez com que a publicação original de Marvelman não durasse muito tempo, e em 1962 a última edição do maior plágio do mundo dos quadrinhos ganhou as ruas na Inglaterra.
Depois de muito tempo no ostracismo, a série ganhou uma segunda chance na revista Warrior no início dos anos 80. O então desconhecido Alan Moore trouxe realismo a série, de uma forma impensável para os padrões narrativos da época. Aqui Marvelman ainda é Michael Moran, mas já com seus quarenta e poucos anos, e tem um “branco” em sua memória de adolescência. Aos poucos Moran vai, através de sonhos repetitivos, lembrando de sua “palavra mágica” e em um momento de grande stress volta a assumir seu corpo divino. Moore insere na trama elementos de ficção científica, explicando que os heróis adolescentes dos anos 50 faziam parte de um projeto secreto do governo britânico, que localizou restos de uma nave alienígena e com a tecnologia herdada criou “supercorpos” para três jovens orfãos. Para que o projeto pudesse manter o controle mental sobre as “armas”, criou-se um ambiente de fantasia onde estes eram super-heróis na era de ouro dos quadrinhos, enfrentando vilões inofensivos e dessa forma mantendo o equilíbrio de suas mentes. Para criar este universo virtual os cientistas do projeto basearam-se em (pasmem!) gibis do Capitão Marvel. Dessa forma Alan Moore utiliza-se do plágio ocorrido anos atrás para criar uma contextualização meta-linguística para sua história, tornando-a, apesar dos vários elementos fantásticos, em algo muito mais atrelado a nossa realidade, além de possuir elementos e conceitos que muitos anos depois viriam a ser “inovadores” em filmes como Matrix e O Décimo Terceiro Andar.
Além do pano de fundo genial de Moore, ainda existem muitos conflitos psicológicos, principalmente com o vilão. Pense em como seria você ter apenas 12 anos e descobrir ser o ser vivo mais poderoso da Terra? Se com uma palavra você pudesse voltar a ser somente um garoto, mas se não a pronunciasse pudesse crescer como um Deus entre os homens? Sem uma família para orientar sua índole e indicar valores, qual seria o grau de desprezo que você sentiria por seres infinitamente inferiores a você? Este é o drama de Kid Miracleman, que vê seus dois companheiros mais velhos supostamente assassinados e resolve permanecer com sua identidade superpoderosa, causando uma cisão em sua personalidade e tornando-se um empresário de sucesso graças a seus dons. A história evolui de forma fantástica e é impossível parar de ler antes do conflito final entre os dois seres poderosos, a diferença é que um deles passou mais de 20 anos aprendendo com suas habilidades e Moran mal lembra de como utilizar seus dons. O ápice do conflito é um dos maiores momentos dos quadrinhos modernos e é leitura imprescindível para quem admira o estilo. Na sequência do arco de Moore, Neil Gaiman assumiu os roteiros, em uma fase totalmente diferente do personagem, flertando com a divindade do herói e outros temas que Gaiman só iria retomar em sua reformulação de Sandman. Mesmo com suas qualidades, o arco comandado por Gaiman ainda deixa muito a desejar em relação ao de Moore.
Três curiosidades: o nome Miracleman foi adotado somente na publicação americana do arco de aventuras, para evitar um possível processo do uso do nome Marvelman pela Marvel Comics. Segundo, uma das edições causou grande polêmica ao mostrar a primeira cena de parto, em uma vista frontal e sem censura. A edição foi censurada e foi uma das poucas em sua época a abrir mão do selo da Comics Code Authority, que até bem pouco tempo regulamentava os quadrinhos nos Estados Unidos. E por fim: até hoje existe uma briga judicial pelo controle do personagem. Há tempos Todd McFarlane, criador do Spawn, comprou o catálogo da Warrior, que detinha os direitos sobre Miracleman, porém uma troca foi acertada com Neil Gaiman, que havia criado a personagem coadjuvante Ângela para McFarlane e não recebeu nada por isso. Como até hoje não houve um acerto definitivo, o personagem continua no limbo, esperando uma definição da justiça para que possa voltar a ser publicado.
O que conta no final é que o verdadeiro Miracleman dos quadrinhos é Alan Moore. Talvez o único escritor capaz de fazer milagres com um personagem plagiado de um plágio, tornando-o referência para qualquer um que goste de quadrinhos e, mais do que isso, de uma história bem contada.
Para quem se interessou e quer ler essa ótima série segue o link para download.
Senha: reverso
Via: Rapadura Açucarada
Na próxima coluna, as grandes mudanças na Marvel e DC Comics após suas sagas Crise Infinita e Guerra Civil começam a chegar as bancas brasileiras. O que mudará de verdade para os leitores?
Um abraço!
Marton Santos