No futebol a regra é clara: a bola está fora de jogo quando ultrapassa completamente as linhas que delimitam o campo, sejam de lateral ou de fundo. Do contrário, está dentro, está em jogo. Mas não há nada simples que não possa ser feito complicado, e saber se uma bola está dentro ou fora de campo pode se tornar um tanto mais difícil se, por exemplo, o campo fosse demarcado assim:
A bola no ponto A estaria dentro ou fora de campo? Não é necessário um esforço muito grande para descobrir, mas e se o campo fosse… assim:
Haveria muito mais espaço para discutir no dia seguinte se era mesmo escanteio ou se o gol era realmente válido. Impedimento, então…
Felizmente a matemática oferece um método espantosamente simples para resolver a questão – você poderá descobrir se um ponto está dentro ou fora do smiley em menos de cinco segundos – que de quebra a relaciona a questões práticas da vida real e outras muito mais profundas como… uma bola sempre estará dentro ou fora de campo? Descubra na continuação.
O Teorema da Curva de Jordan
No clipe da excelente série “Arte e Matemática” acima, é apresentada uma forma simples de descobrir se um ponto está dentro ou fora de uma curva fechada: basta traçar uma reta que vá do ponto até o exterior e contar quantas vezes ela corta a curva.
Se nesse caminho a semi-reta cruzar a curva um número ímpar de vezes, então o ponto está dentro da curva. Se for um número par, está fora.
Intuitivamente é fácil entender isto. Se a bola está dentro de campo, para sair basta cruzar a demarcação uma vez. O número 1 é ímpar. A bola pode até voltar para dentro de campo depois disso, cruzando novamente a linha, mas para sair terá então que cruzá-la ainda outra vez. O que está dentro de campo deve sempre cruzar sua fronteira um número ímpar de vezes para acabar fora. Geralmente, e em um jogo de futebol com um campo decente, este número é 1.
Caso a bola já esteja fora de campo, para voltar ao jogo e tornar a sair, ela terá que cruzar as delimitações um número par de vezes. Pode entrar mais uma vez, mas para tornar a sair, completará um outro par. E assim por diante. O que está fora de campo sempre cruzará a linha um número par de vezes para voltar a ficar de fora.
Sabendo disto agora é fácil descobrir se o ponto A na primeira curva fechada simples desta coluna está dentro ou fora de campo:
Note que foram traçadas quatro retas, mas apenas uma seria necessária. Todas acabam cortando a curva um número par de vezes para ir do ponto A a um ponto exterior. Como vimos, par, fora. O ponto A está fora de campo.
Você pode ter notado os quadrados nas semi-retas à direita. São pontos onde as retas tocaram a curva tangencialmente, e aqui vai a dica, tais pontos não contam como cruzamentos. A regra é clara: a bola precisa ultrapassar completamente a marcação!
Outra dica: não é necessário que seja uma semi-reta ligando o ponto ao exterior. Você pode traçar uma reta não tão reta assim, ou mesmo uma curva tortuosa em seu caminho até a liberdade (ou o gol, ou o escanteio). Não é qualquer curva que poderá servir, mas toda curva que você poderá traçar com um lápis e contar quantos cruzamentos faz até o exterior deve funcionar.
Com essas dicas, e meio que entrando no terreno do sempre ótimo Logica Mente, você pode descobrir se o ponto vermelho abaixo está dentro ou fora do smiley?
Experimente diferentes caminhos, que lembrando, não precisam ser estritamente retilíneos para ir do ponto até chegar ao exterior. Veja se são todos pares ou ímpares em seus cruzamentos. Se forem pares, o ponto está fora. Ímpar, dentro. A resposta você encontra aqui (role até o final).
Agora sim, o Teorema da Curva de Jordan
E tudo isso, caros Sedentários, não é o teorema de Jordan! Bem, não precisamente. A idéia de traçar semi-retas indo de um ponto até seu exterior e contar quantas vezes cortam a curva é parte de uma das demonstrações (e aplicações) do teorema de Jordan, que em si mesmo simplesmente declara que:
“Uma curva fechada simples no plano divide-o em duas partes”.
“Curva” pode ser entendida da maneira comum, embora em matemática uma reta também seja uma curva. Ela será “fechada” se seu início coincidir com seu fim, como em um círculo, e “simples” se não cruzar a si mesma. Essas curvas fechadas simples são também chamadas de curvas de Jordan. Ele foi um homem, aliás, apesar de ter nome de mulher (Marie Ennemond Camille Jordan).
Pode parecer óbvio que toda curva de Jordan, como círculos e polígonos (ainda que nem todo polígono seja uma), sempre definirá um interior e um exterior. Ou a bola estará dentro ou fora. Parece tão óbvio que um reles mortal pensaria que só um matemático com nome de mulher se importaria em provar algo tão simples.
Se é tão óbvio, tão simples, tão inútil, deveria ser fácil de demonstrar. Jordan percebeu que não era bem assim. Até porque embora tenha sido o primeiro a declarar o teorema em 1887 e fornecer uma demonstração, posteriormente se descobriu que sua prova estava errada, e foi apenas quase vinte anos depois que se chegou a uma demonstração rigorosamente correta. Não faz muito mais que 100 anos que provamos que curvas de Jordan têm um lado de dentro e um de fora.
A dificuldade na prova geral surge porque curvas fechadas simples podem, por assim dizer, ser muito complicadas. Mesmo alguns fractais se incluem aí, como a estrela de Koch.
Essa curva é infinitamente detalhada, mas ao provar o já não tão óbvio teorema de Jordan, sabemos que ela divide o plano em apenas duas partes. O desenvolvimento de técnicas matemáticas para provar rigorosamente o teorema impulsionou o estabelecimento da topologia, com aplicações das mais diversas e importantes, indo de correntes de circulação de ar planetárias ao Orkut.
Pouco depois de provado o teorema, também se demonstrou que curvas de Jordan são homeomórficas a um círculo, isto é, você pode deformar um círculo, esticando aqui e apertando lá, até chegar a elas, e vice-versa. É isso que foi ilustrado com o elástico esticado no começo do clipe lá no início desta coluna.
E falando em topologia, e retornando aos clipes da série de Luiz Barco sobre “Arte de Matemática”, não poderíamos deixar de incluir aqui este outro sobre as pontes de Königsberg:
Note a semelhança com as idéias relacionadas ao teorema de Jordan. Se há um número ímpar de pontes conectado a uma ilha, e você deve percorrê-las todas apenas uma vez, então essa ilha é necessariamente o início ou o final do seu caminho – metade das pontes serão cruzadas para sair da ilha, outra metade para entrar, e a ponte “ímpar” que sobrar deve ser usada para sair ou entrar. Isto é, se você estava de um “lado”, terminará do outro.
A forma das pontes, das ilhas, as distâncias entre elas, realmente não importam nesse problema e em sua solução. Assim como as mais intrincadas deformações de um círculo não alteram o fato de que se você cruzá-lo um número par de vezes, continuará do mesmo lado — de dentro ou de fora. Essa capacidade de abstração reside no cerne da matemática e é a razão de todo seu poder. É por vezes provando teoremas dos mais simples que conclusões e idéias das mais fabulosas podem surgir.
Fermat que o diga.
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[via gaussianos: El teorema de la curva de Jordan]
Quer mais ciência inusitada? Esta foi uma coluna original exclusiva para o Dúvida Razoável aqui no S&H, mas você também pode conferir outros textos em 100nexos:
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