Cavalos voam? Talvez soe como uma pergunta infantil, e no entanto mesmo milênios após a domesticação dos equinos, tão tarde quanto no século 19 ainda se discutia se um cavalo a galope mantia sempre uma pata em contato com o chão, ou se conseguia, por breves momentos, sustentá-las todas no ar. As mais épicas batalhas, com tropas sem fim de cavalos, e os mais ágeis e treinados cavaleiros não bastaram, pois as patas de um cavalo a galope simplesmente se movem rápido demais para que qualquer olho humano pudesse enxergá-las com precisão.
Nem mesmo um gênio como Leonardo da Vinci sabia se cavalos voavam. Fascinado pelo animal, uma de suas mais fabulosas obras é uma pintura que se perdeu no tempo: A Batalha de Anghiari. Ela tinha como tema central a luta de quatro cavaleiros, e dela restaram apenas cópias parciais como a que você confere no topo. E ainda assim as cópias capturam uma composição incrível – nenhum cavalo estava a galope, é bem verdade, e ainda assim pode-se quase enxergar movimento na luta. E ainda assim, todos os cavalos mantiam pelo menos uma pata no chão. Não eram cavalos voadores. Da Vinci não sabia se cavalos podiam voar.
Há pouco mais de 100 anos um homem descobriu se cavalos voavam e inaugurou uma nova arte.
Ele combinou uma grande inovação, a fotografia, com uma mente inventiva. Ele era Eadweard Muybridge, celebrado hoje pelo Google, e foi o primeiro a transformar cenas de luz congeladas no tempo, as fotografias, em imagens em movimento, os filmes.
As duas dúzias de fotos em sequência do cavalo Occident galopando na pista de corridas de Union Park, projetadas em uma tela na California School of Fine Arts, formaram a primeira exibição de um filme na história. O filme demonstrava: cavalos voam, ainda que por frações de segundo. E com cavalos voadores em movimento, nascia a sétima arte.
A tecnologia das imagens não só criou como moldou nossa arte, nossa percepção do mundo e mesmo nossos sonhos.
Aprecie, por exemplo, a imagem abaixo. É uma idílica cena européia, de um destino turístico fantástico. E realmente é. Mas a imagem captura uma cena do monastério de Nilova como era em 1910, há mais de 100 anos.
A imagem colorida tem mais de 100 anos. O céu azul não foi colorizado artificialmente, nem artisticamente a partir de uma fotografia em preto e branco. As cores não são imaginadas: as cores que vemos foram capturadas em um elaborado processo criado por outro inovador, Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii. São cores de mais de 100 anos.
Ao contrário de cavalos voadores, sempre vimos um mundo repleto de cores, porém como vemos o passado distante apenas através de fotografias ou pinturas desbotadas, vemos um passado distante de cores igualmente desbotadas.
Vemos uma Antiguidade Clássica repleta de estátuas brancas, sem nenhuma cor, quando em verdade estas eram criadas com cores vibrantes. Os milênios desbotaram as cores, e quando o Renascimento reavivou nosso interesse pela arte, as cores já se haviam perdido. O desbotado se tornou uma nova estética, e estátuas coloridas nos causam estranhamento. Como a fotografia colorida de 100 anos também nos estranha.
A tecnologia das imagens não só criou como moldou nossa arte, nossa percepção do mundo e mesmo nossos sonhos.
Você sonha em preto e branco? Então é provável que tenha mais de 60 anos, e tenha passado o período crucial de sua infância, entre três e 10 anos, impressionado por um minúsculo e monocromático tubo de televisão.
Em uma demonstração fascinante de viés em ciência, a pesquisa científica pioneira sobre sonhos iniciando-se nos primórdios do século 20 e indo até a década de 1950 dava como evidente que a maior parte das pessoas sonhava em preto e branco. Este senso comum permeia até hoje nossa cultura, onde sonhos são representados não apenas como imagens borradas, com sons pouco claros e repletos de ecos, mas também em imagens em preto e branco.
Com o advento de filmes e da TV colorida, isso mudou. Hoje, a maior parte das pessoas com menos de 30 anos sonha em cores. O fascinante é que estamos apenas retornando a como sempre sonhamos: é pouco provável que em qualquer outro período de nossa história uma parcela significativa de seres humanos sonhasse um mundo sem cores. O mundo que experimentamos sempre foi colorido, os sonhos refletiam essa experiência.
Foi apenas o curto período dominado por imagens monocromáticas, desde a invenção da fotografia e então do filme, de Muybridge e Lumiére, até a chegada às cores em imagens em movimento aos cinemas e então em todas as casas, de filmes Technicolor a TVs coloridas Telefunken, que coincidiu com os primórdios da exploração científica do mundo onírico. O mundo podia ser colorido, porém as narrativas de impacto, as fotografias, o cinema e toda a mídia era monocromática. E ela moldava nossos sonhos e como eles eram relatados aos cientistas.
A tecnologia das imagens não só criou como moldou nossa arte, nossa percepção do mundo e mesmo nossos sonhos.
E descobrir isto é descobrir que o retorno aos sonhos coloridos não é por sua parte o retorno ao mundo de sonhos que nossos antepassados experimentavam. Podemos ter crescido, desde os três anos, impressionados com imagens coloridas, mas ainda as víamos através de pequenos tubos.
Como isso afetou nossos sonhos, nossa percepção, nossa arte? As gerações que hoje experimentam desde o nascimento um mundo de imagens em alta definição irá sonhar em Full HD?
Costumamos pensar que nossa visão do mundo reproduz a realidade em detalhe, e no entanto mesmo a realidade que percebemos diretamente é fragmentada, e a memória de que nos lembramos é construída a partir destes fragmentos. Pequenas janelas para mundos por vezes imaginados, por vezes reais, moldaram os sonhos de toda a humanidade, tirando-lhe as cores, devolvendo-as, e de outras formas que mal podemos perceber, simplesmente porque os sonhos que temos são os únicos que sempre conhecemos.
Descobrir que cavalos voam foi apenas o começo.