Kurt Cobain: Montage of Heck ≈ Cine Verité por Rafaela Gomes

A clássica história do rock

Pobre menino pobre, desajeitado, desajustado, incompleto, incompreendido. Desleixado, preguiçoso, sem foco. Sem lar, sem família, sem nada. Quantas histórias já ouvimos com esse mesmo DNA ‘impuro’, mal visto e mal quisto, não é? Mas essa história não é uma dessas. Esta aqui atinge as profundezas da alma, dilacera o peito aberto, já ensanguentando por tamanha honestidade. Essa história até começa assim, mas termina diferente. Talvez pior, talvez mais sofrida, mais solitária, mais despedaçada. Mas não se trata do começo e do fim. Na história contada no mais recente documentário “Kurt Cobain: Montagem of Heck”, o ‘entre’ é o que importa. Não se trata de mais uma clássica história do rock, se trata da história definitiva sobre o maior ícone da sua geração. Um rei sem coroa, um rei sem querer.

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Admitir que não há mais para onde ir em se tratando da complexidade de Kurt Cobain não seria exagero. De fato, não há. O documentarista indicado ao Oscar Brett Morgen mergulhou em águas tão profundas que cruzar qualquer outra fronteira seria impossível e por que não, desnecessário. Este é o documentário mais impactante sobre um artista. É até difícil mensurar sua simbologia com tamanha precisão, por trás da complexidade de Kurt Cobain trazida com tanta veracidade e voracidade para as telas. A brutalidade encanta, dói, incomoda, sangra. Mas o músico era assim. E afinal, qual seria a outra forma de contar isso?

“Montage of Heck” reúne a compilação mais completa e pura de um artista que até hoje gera fascínio por seu brilhantismo musical e psique delicadamente complexa e gritante. Absorto por tudo aquilo que seus fãs, apaixonados por música e curiosos sempre especularam a respeito do seu perfil, sua sensibilidade e genialidade incomum, Morgen foi à nascente mais pura sobre a história de Kurt Cobain, se privando de influências midiáticas e do que se espera de um ícone. Ele foi direto naqueles onde a verdade reside: a família.

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Na teoria, o elo mais forte. Na vida de Kurt, o mais fraco. A fragilidade e pequenez sentida pelo artista ao longo dos seus 27 anos são oriundas da sua base familiar desestruturada. Tratado como “complicado demais”, o jovem passou a infância sendo encantador e a juventude toda sendo rejeitado, ignorado. E sua fragilidade está ali, na ausência de um lar. Coração partido pela terrível sensação de abandono, com feridas ainda doloridas. Sua música é reflexo desse não pertencer e a identificação com o público foi súbita. Sem querer, ele se tornou aquele cara que ele um dia quis seguir, mas não sabia. E quando chegou lá, percebeu que ainda era aquele garoto que queria pertencer. Que talvez não quisesse liderar, mas ser liderado na companhia de outros. Tudo a fim de romper com a solidão.

E o documentário nos leva para o cerne de Kurt, para a complexidade da sua fragilidade, para seu perfeccionismo artístico escondido por trás do grunge, que sempre fora sinônimo de despretensão. É como se colocássemos óculos que nos permitem enxergar o mundo pela perspectiva do dono do objeto. Ao ficarmos diante da tela, passamos a ver as coisas pela ótica dilacerada de Kurt Cobain. Folheamos seus inúmeros diários, percebemos seu romantismo inveterado, vemos de perto seu processo criativo como frontman do Nirvana, a cobrança de si mesmo e do mundo, sua arte, sua dor na arte e sua luta para tentar pertencer mesmo quando já é parte de algo.